quarta-feira, novembro 22, 2006

O Livro dos Bons Princípios (6)

Acordou e olhou-se ao espelho, como todas as manhãs. Ficou intrigado com a ausência de diferenças em relação ao que fora: nem uma ruga, nem uma borbulha, nem um cabelo branco… O tempo não tinha passado pelo seu corpo. Olhou ainda as mãos, finas e ágeis, decerto já não tão robustas, mas ainda fortes e viris. Levantou o pijama que lhe cobria o peito e verificou que os abdominais lhe mostravam juventude e os peitorais respiravam vigorosamente. Respirou aliviado, feliz talvez por continuar a respirar. De novo, voltou a vestir-se, e, como todas as manhãs, correu para a casa de banho para ser homem e, como todas as manhãs, libertou-se da humanidade suada e imunda que o seu corpo acumulara em tantas partes de si, desde o intestino até ao sovaco… Ao sair de casa, a caminho do seu escritório na avenida mais in, voltou ao quarto e reparou na mulher que se tinha deitado com ele na noite anterior e em todas as noites desde há 18 anos: não tinha dado por ela. Não sentiu falta da sua juventude, não a olhou duas vezes...

Outros princípios
O afinador de sinos (1) e (4)
Divas e Contrabaixos (2) e (5)
Inominável (3)

domingo, novembro 19, 2006

pedido

quero que me dês o mundo

se não o puderes embrulhar
atira-me uma imitação brilhante
que também traga dias de sol
e estrelas do norte
e crianças a brincar à nossa porta

(deixa a porta aberta)

sexta-feira, novembro 17, 2006

anti-post

abri o blogger com a ideia de escrever algo "a sério", mas sem que eu quisesse, este post transformou-se, qual "metamorfose ambulante", num anti-post... um espaço de nada, feito de paráfrases de vazio... um pretérito perfeito em forma de ausência... um espaço feito de palavras desbaratadas... um espaço que se perde na incapacidade de servir para alguma coisa...

este é então um anti-post num anti-espaço...

isto tudo para anunciar que este post não serve para nada. Pim (lá dizia o outro). não serve para comentar, não serve para masturbar neurónios, não serve para imprimir e mostrar à família, não serve como material de escárnio. Pim.

terça-feira, novembro 14, 2006

O livro dos bons princípios (3)

O que prometeste naquela noite é que regressarias mais tarde, "daqui a pouco", com uma surpresa boa. Não disseste que me trarias uma caixinha encarnada, embrulhada em cetiz preto, com um anel de preço comprometedor a fitar-me e a brilhar mais do que eu. Não me disseste que esperavas que a abrisse com entusiasmo ou que respondesse à tua pergunta (aquela que nunca quis ouvir!!! e que vai bem com a nossa música preferida) com o mesmo encanto eufórico com que a pronunciaste. Não me disseste nunca que esperavas mudar a minha forma de encarar a vida e a morte do amor, nem nunca esperaste fazê-lo entre lençóis, porque aí apenas inventamos que estamos vivos… Fiquei tão indignada contigo! Ou foi raiva? Ou decepção?

Balbuciaste umas palavras de incompreensão que nenhum de nós quis ouvir, que fingi não ouvir, voltaste as costas e eu soube que estavas a tapar o choro ou o grito com a palma da mão. Sei que te esmaguei, mas os teus sentimentos eram demasiado tenros, como fruta que pisamos no chão, mesmo sem querer ou quando queremos mordê-la mas se desfaz nas nossas mãos.

Agora sei que vais casar. Por isso decidiste encontrar-te mais uma vez comigo... Para me dizeres isso. Talvez humilhar-me. Não me conheces. Mas porque é que esta conversa tinha que acabar sem roupa, como as outras antes desta? Casa-te. Quem fica com as tuas alianças sou eu.

Outros princípios:
O afinador de sinos (1)
Divas & Contrabaixos (2)

segunda-feira, novembro 13, 2006

O livro dos bons princípios

... começou a maior estafeta de todos os tempos... à segunda-feira o Afinador de sinos passa a Divas & Contrabaixos que, às terças-feiras, passa a Ponto de Saturação, que tenta não perder o fôlego até quarta ... e correm, correm, correm, cada semana para sugerir três princípios radicalmente novos e originais (é verdade que aqui estou a ser... hiperbólica) para um romance, um conto, uma novela... correm, correm, correm para trazer novos mundos ao mundo...

o que dizem os leitores sobre isto:

"que raio de projecto é este?" (anónimo 1)
"dá-lhes para cada coisa..." (anónimo 2)
"não compreendi? andam a inventar ou a plagiar?" (anónimo 3)
"a liberdade vai passando por aqui..." (não deixou nem o anonimato)
"o melhor projecto da Blogosfera a seguir a vários outros que não menciono" (Inominável)

sábado, novembro 11, 2006

o meu Valentine

só o meu Valentine
fede de vinho a martelo
e me dá rosas roubadas
do jardim de um shopping
todas as noites me oferece
um dos anéis de Saturno
e inventamos o amor em torres de areia
de prédios em construção
o seu perfume é glandular
de água com sabão azul
e a sua boca tem o sabor doce
de cigarro com pastilha elástica
saimos a passear
nos autocarros vazios da cidade
à conversa sobre futebol e Zara
enquanto inventa sobre raparigas que não teve
e me conta lugares que não existem

jura que os meus olhos são lindos
de cada vez que me deita sobre a areia
desmanchamos as torres
e os meus cabelos se enredam na areia fina e crivada

sabe chorar
e eu sei amá-lo por isso

quinta-feira, novembro 09, 2006

Cobardia (curta-metragem 8)

Era uma vez uma rapariga cobarde que só conseguia amar se soubesse que tudo teria que acabar! Entregava-se aos amores mais destruidores, aos amores desgastantes, aos amores longínquos, porque encontrava assim desculpas para terminar com todos esses enganos e alegar os erros que qualquer humano deve cometer para avançar… Claro que esses supostos amores também serviam para sofrer e dignificar a sua função de amante.

E é verdade que sofria! Apaixonava-se e distanciava-se sempre com dor: a dor da despedida, breve ou para sempre, a dor da ausência, a dor dos sentimentos incertos que sufocam e parecem matar… a dor de saber que nunca mais. Quem a conheceu (eu conheci-a!) sabe que não amava de propósito, não sofria de propósito, assim como não se vive ou se respira de propósito: tudo acontecia simplesmente e ao acaso, sem vontade de ninguém! Às vezes dava consigo a pensar que não queria nada amar ou enrolar-se e enganar-se com este ou aquele, esta ou aquela, mas acabava por acontecer! Mesmo contra a vontade mais ferrenha.

Disse-me, numa tarde de inverno deitada sobre uma areia molhada, que não lhe apetecia nada gostar de mim porque teríamos que terminar, que eu também sabia disso e que, por isso, só estavamos a perder tempo.

"E que o tempo, mesmo tendo sido feito para se perder, deve ser perdido com algum pudor, com algum respeito, com comedimento".

Claro que perder tempo comigo era uma perda tão grande como com outro qualquer… A verdade é que não me queria amar. Eu compreendi. Deixei-a deitada na areia e caminhei para longe. Para outro país.

Era uma vez uma rapariga cobarde que tinha medo de amar e que amava sempre demais, enorme erro. Queria amizades e, ironicamente, perdia todos os amigos porque se impunha sempre o desejo maior de querer ir além do que lhe tinha sido destinado no elenco da amizade. Todas as encenações de amigos falhavam… Quis ser minha amiga. Eu quis ser seu amante. Foi esta inversão de papéis que nos separou: eu amei antes dela…

Era uma vez uma rapariga qualquer que…

quarta-feira, novembro 08, 2006

...(podem ser muitos)...

monta-me
e dá-me esporas

prefiro dor
à liberdade