quinta-feira, janeiro 04, 2007

O Livro dos Bons Princípios (20)

Era o quarto filho dos Pereira, para quem as esperanças de uma vida folgada tinham ficado na capital angolana, junto dos despojos de uma primeira tentativa de vida: casa, carro, palmeiras e balouços… Só a primeira filha regressou com o casal, quando a casa foi invadida e queimada. Isso terá sido por volta da revolução, e já nessa altura se enchia o país com os portugueses de segunda que atafulhavam os portos de Lisboa e transformavam a paisagem da capital com as barracas improvisadas: português que é português sabe que tudo já está bem quando "arremedeia". Assim, criavam-se e transformavam-se bairros em Portugal, que segundo os retornados se assemelhavam às sanzalas, sempre depreciativas, sempre pouco higienizadas, sempre piores que as dos pretos, mas sempre vistas como provisórias. "Até que o governo nos dê uma casa", dizia-se, sem se saber ao certo quem era esse governo e sem conhecer as suas prioridades. Sem saber quando viria essa casa e sem saber que Portugal era bastante mais frio para as crianças e para as bananas e mangos e abacates que agora já não cresciam à beira das estradas. Sem saber que para sempre seriam conhecidos por retornados e que isso os impediria de aceder à classe dos bem-vindo. Que nunca seriam emigrantes tão bons como os lusofranceses, lusobrasileiros, lusocanadianos, lusoamericanos e outros bem vistos lusos.

Outros princípios, a cheirar ao novo ano em Divas & Contrabaixos e em O Afinador de Sinos. Todos aqui.

9 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

bons. os princípios. aqui.



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bom ano. beijo.


:)

Anónimo disse...

Olá, colega. Bom ano. Sabias que eu também sou um "retornado" ? Os meus "Pereira" já lá estavam há algumas gerações.

inominável disse...

se calhar és o meu protagonista e eu nem sabia :) e afinal, há Pereiras em todo este Portugal adentro... é preciso lembrá-lo, porque essas raízes também são nossas...

bem-vindo aos Pereiras :)

Ida disse...

Sem saber que para sempre seriam conhecidos por retornados e que isso os impediria de aceder à classe dos bem-vindo. Que nunca seriam emigrantes tão bons como os lusofranceses, lusobrasileiros, lusocanadianos, lusoamericanos e outros bem vistos lusos.

Esse termo é de uma crueldade e de uma desigualdade sem par. Sem contar que os retornados, eles, os retornados, muitas vezes, em sua maioria, nasceram nas mesmas aldeias que os que os chamavam assim e os apontavam com o dedo.

Mas, os retornados, esses retornados, traziam sol nas sobrancelhas, e viam para além das encostas geladas, para além das planícies achatadas, achatadas como o olhar, as idéias e o coração dos da metrópole. É, Portugal continental. Os daí, estavam muito ocupados quando chegaram os retornados. Ocupados em pensar maneiras de lucrar muito com o espólio dos desgraçados, as pratas, os diamantes, as miudezas de valor que os do continente se apressavam a apreçar por uma módica e indecente quantia, ainda barganhada na fria hora do desespero. Eu sei que foi assim, conheci, extemporaneamente e por acaso, sem querer mesmo, o filho de um desses "honestos" comerciantes que foram "generosos" e compraram (para lucrar) as ditas miudezas salvas nos aviões da força aérea, da TAP ou de nações amigas que os colocaram à disposição.

Houve, também, retornados que atravessaram o Atlântico, em aviões da Varig, e reconstruíram as vidas e os destinos no outro sulbúrbio. Rio, São Paulo, sabe-se lá onde. O Galeão, aeroporto pequeno na época, andava lotado, com parentes e amigos a fazer romaria todo santo dia, sem saber ao certo quando iriam abraçar os que fugiam. E os que fugiam, que nunca foram chamados retornados, encontraram lusobrasileiros prontos a acolhê-los. Corrijam-me, se estiver errada. O governo brasileiro (talvez seja a única ação decente que eu posso atribuir ao governo do golpe militar) liberou todas as formalidades alfandegárias e de identificação. Durante mais de vinte anos os que de lá vieram puderam trabalhar, estudar, viver com plenos direitos de cidadania sem ter que provar identidade. Fizeram novos documentos e novos sonhos, e os concretizaram, em sua maioria. Conheci também uns Pereira, que cá estão até hoje. Cujos filhos aderiram ao modus vivendi deste sul... burbio e, parece, vivem muito bem obrigado. Só vão ao continente para ver avós.

Quanto aos emigrantes bem vistos, acho que só o são quando em férias, a gastar o dinheirinho poupado em extensas horas de trabalho duro, muito mais duro do que jamais tiveram os do continente, que os consideram "bem vindos". Em Portugal, emigrantes são sempre motivo de inveja ou de zombaria, ou de ambas as coisas, na maior parte do tempo.

PS: Desculpa a invasão e a ocupação de espaço com tantas palavras que, bem sei, não chegam aos pés das tuas, muito mais criativas e sutis. Adorei o teu texto, mas ele fala de um pedaço da história que eu presenciei e, apesar da pouca idade, marcou-me para sempre. A releitura que fiz desses episódios, ao longo dos anos e das idas e vindas ao continente, marcou-me profundamente. Sei que me entendes.

Diogo disse...

O termo retornado demorou a desaparecer mas penso que hoje já é raramente utilizado.

Anónimo disse...

eu ká uzo çempre quando reentorno kual ker koiza. Pur ezemplo: ohh, possas... (merda ou foda-se para os graudos), lá reentornei o leite.

bruno disse...

Ó Sem Nomes, vim, ainda sem a companhia do Tempo, votar que a relação apofática da autora com os leitores se prolongue ano fora (ou dentro, depende - claro - de onde estamos nós), e que a imersão nas àguas da passagem e renovo tenha sido, sido.

Um abraço, e boas Noites.

Ida disse...

Ó sem nomes! (Tou a fazer coro com o de cima, ver se jogas as tranças da sacada!!! como a Rapunzel!) Nuncamaisapareces!!! Diz ao bárbaro que nós tamemprecisamosdeti! Tá bem, aí vale a tua preferência... eu já sei... não precisavas ser tão explícita... Mas, saudades, pode-se sentir, não?

inominável disse...

nunca me tinha pensado como "apofática", mas agora vou reflectir sobre o caso... obrigada Bruno, por mais uma oportunidade para pensar...